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“Seu útero tem o formato de um coração”.
Foi com estas lindas palavras que o médico me comunicou que eu tinha um útero ‘diferente’.
Era o ano de 2002 e eu tinha quinze anos. Passava numa consulta de rotina do check-up anual. “Mas, o quê isso implica?”, perguntei, mais fascinada pelo fato de eu, pela primeira vez na vida ter alguma anomalia física, do que preocupada de verdade. Ele me explicou que pelo ultra-som não estava claro se meu útero era didelfo ou bicorno, mas que de qualquer maneira, não era ‘normal’.
Deixem-me explicar então, o pouco que entendo do assunto:
Um útero normal tem mais ou menos a forma de uma pêra invertida:
Já um útero bicorno tem um recorte na parte superior e parece um coração:
O útero didelfo / útero duplo são na verdade dois úteros, de forma que a mulher tem assim dois colos de útero:
O médico foi muito solícito. Me apontou a anomalia no ultra-som e fez desenhos para me explicar tudo. Mas também disse que:
(a) eu teria dificuldade para engravidar;
(b) se eu eventualmente conseguisse engravidar a gravidez seria de alto risco.
Na hora eu pouco me importei. Afinal, eu tinha quinze anos! Pensei: “Se não der, eu adoto”. Quem se desesperou foi minha mãe que já foi logo dizendo que serviria de barriga de aluguel se eu precisasse. Achei o fim da picada! Mas hoje eu entendo sua reação. Se eu tivesse recebido esse diagnóstico quando fosse um pouco mais velha ele teria me pego de jeito. Diante de uma impossibilidade real de engravidar ou de segurar um bebê eu provavelmente optaria pela adoção mesmo, ou por uma barriga de aluguel, mas certamente não seria fácil me conformar e aceitar a situação.
Aos poucos pipocaram alegações aqui e ali – culpa do Google e de médicos sem-noção - de que além dos prognósticos negativos (a) e (b), se eu engravidasse eu poderia sofrer um aborto, ou o bebê poderia nascer prematuro – o que para mim, na época, era o mesmo que dizer que ele nasceria com sérios problemas, ah, que ironia do destino! – e também de que seria muito improvável um parto normal.
E diante de tanta negatividade, meu cérebro, esperto, decidiu barrar toda e qualquer informação sobre o assunto. Nos anos seguintes passei a realmente não pensar na minha anomalia e a pensar em lidar com as coisas conforme elas acontecessem, não antes: “Cruzarei essa ponte quando chegar a ela”. Decidi que tudo se resolveria. Chegou ao ponto em que eu já nem me lembrava mais disso tudo, nem quando conversava com as pessoas sobre bebês, filhos, gravidez. E acho que deu certo. Pelo menos em parte.
Não tive dificuldade nenhuma para engravidar. Pelo contrário. Engravidei de primeira. Mas a previsão (b), de que a gravidez seria de alto risco, se mostrou certeira.
O primeiro ultra-som em que Isabel aparece foi feito num PS às seis semanas de gestação. Eu havia sofrido uma ameaça de aborto. Foi um sangramento pequeno e escuro, a tal ‘borra de café’. Mas o suficiente para me deixar em estado de alerta e para trazer à tona toda aquela negatividade de anos antes. E todas as preocupações, incertezas e aflições. De repente eu me lembrei do meu útero bicorno. Ou seria didelfo? A médica disse que não dava para saber, ainda mais eu já estando grávida...
A recomendação foi ficar em repouso relativo – “não precisa ficar de cama mas evita ao máximo fazer esforço” – por quinze dias e praticar a abstinência sexual “provavelmente até o final da gravidez”. Fiquei afastada do trabalho e muito deprimida com a situação. Ignorei o que a médica disse e fiquei de cama mesmo. E comi muito para descontar toda minha angústia. Engordei 3kg em duas semanas.
O sangramento demorou uns sete dias para cessar. Retomei minhas atividades normalmente. Até que tive um outro sangramento, cerca de duas semanas depois. Tornei a correr para o PS. Desta vez não foi preciso fazer um ultra-som. Os batimentos do bebê estavam normais e no exame de toque não foi detectado nenhum resquício de sangue. Eu não precisaria repousar novamente, mas teria que ter muita cautela.
E assim dois outros pequenos sangramentos se sucederam num espaço de poucos dias. Fiquei apreensiva, com medo de que eu fosse perder meu bebê, ou passar a gravidez toda de cama, deprimida, engordar horrores. Mil coisas me passavam pela cabeça.
Procurei explicações para o que havia acontecido, mas foi tudo em vão. Alguns médicos sugeriram que – por eu ter um útero ou bicorno ou didelfo e, portanto, haver menos espaço para o bebê se mexer – qualquer movimento mais brusco poderia ocasionar um sangramento. Outros diziam que os sangramentos poderiam ser ‘mini-menstruações’. Eu já tinha ouvido falar em mulheres que continuam menstruando mesmo depois de grávidas, mas não parecia ser meu caso porque os meus eram sangramentos com intervalos irregulares.
Logo parei de questionar tanto pois eles finalmente desapareceram. Nunca mais vi a tal ‘borra de café’. Eu já estava calma e tranqüila de novo, segura de que tudo daria certo.
A certa altura do campeonato, quando eu já completava três meses de gravidez, decidi que tinha que perder o peso ganho nas semanas em que fiquei de cama ou eu terminaria a gravidez com uns quarenta quilos a mais. E assim, num fim-de-semana, com o aval da médica, retomei minhas caminhadas rápidas e exercícios com bola suíça e cinta elástica. Só que exagerei na dose. No afã de emagrecer logo eu malhei cerca de duas horas por dia por três dias seguidos. O resultado foi catastrófico.
Domingo à noite fui me deitar sentindo cólicas leves. Como eu já estava acostumada, não dei muita bola. Mas foi uma noite mal-dormida. E interrompida às seis da manhã quando me dei conta de que eu estava deitada numa poça de sangue. Ascendi a luz e vi meu pijama e lençóis tomados por uma mancha vermelha. E para meu desespero era um vermelho-vivo. Eu já tinha lido que quanto mais vivo for o vermelho do sangramento, mais recente é o sangue e portanto mais preocupante é o quadro. No entanto, isso não significa que a ‘borra de café’ não seja motivo para correr para o PS. Ambos são.
Como eu tinha consulta com o GO logo pela manhã, às dez, decidi não ir para o PS como de costume. Tomei banho e me arrumei chorando. Liguei para meu marido que estava viajando – e que tem uma fé inabalável. Ele ficou bravo com a minha descrença. E eu brava com ele.
Era minha primeira consulta com esse GO. A outra médica eu tinha abandonado porque meu plano de saúde mudou e não cobria mais consultas com ela. Eu era a penúltima paciente dele e ele tivera que agilizar os atendimentos pois um parto o esperava no hospital. Fiquei inconformada. Justo nesse dia ele teria que me atender rápido?
Por sorte ele foi humano. Vendo minha dor e sofrimento primeiro me acalmou e depois procedeu à verificação dos batimentos do bebê. Foram segundos decisivos. Me senti como um réu à espera do veredicto. Mas meu marido tinha razão. O bebê estava vivo. Tinha sido só mais uma ameaça, um susto. Sinceramente, foi um milagre. Foi muita proteção. Eu tinha pisado na bola. E pisado feio.
Me lembro de que o médico ficou um bom tempo conversando comigo, tirando minhas dúvidas. Num dado momento sua secretária entrou no consultório dizendo que o táxi já o estava esperando. A resposta dele? “Vai ter que esperar”. Me senti mal pela mãe que estava prestes a ter um filho mas nessa hora eu tinha que ser egoísta. Meses mais tarde, quando esse mesmo médico não chegou a tempo de fazer o parto da Isabel e ela nasceu pelas mãos de uma plantonista, senti como se uma dívida tivesse sido quitada.
Mais uma vez fiquei afastada do trabalho por quinze dias em repouso relativo. A novidade era que agora eu teria que tomar remédios. Eram dois. O Ultrogestan, progesterona para ajudar o útero a ‘segurar’ o bebê. E o Dactil-OB para evitar um parto prematuro. O Ultrogestan podia ser tomado via oral ou vaginal mas eu preferi a via vaginal porque li que dava melhores resultados. Uma cápsula, uma vez ao dia. O Dactil-OB era para eu tomar de seis em seis horas. Os dois medicamentos me acompanhariam a gravidez toda, como de fato o fizeram. No dia em que Isabel nasceu eu ainda os estava tomando.
Praticar a abstinência sexual não foi nada fácil. Confesso que lá pelos sete meses de gestação acabamos quebrando-a umas três ou quatro vezes. Com muito cuidado e carinho, é claro. Mas mesmo assim você fica com receio. Se tivesse dado algum problema acho que nunca me perdoaria. Hoje eu penso que existem muitos outros meios de manter o amor e a intimidade do casal sem colocar o bebê em risco quando o médico proíbe o ato sexual em si.
E também hoje sei que fiz muita burrada no começo da gravidez. Eu não sabia mas o primeiro trimestre da gravidez é o mais delicado. Sempre pensei que fosse o contrário, que o último é que seria. Por conta do tamanho do bebê, da barriga, etc. Mas descobri que a maioria dos abortos espontâneos acontece nos três primeiros meses de gestação. É por isso que a maioria das pessoas só conta a novidade para os outros passado esse período. É um período crítico. Óbvio que abortos espontâneos podem ocorrer em qualquer estágio mas é no primeiro trimestre que estamos mais suscetíveis a eles. E descobri também que muito mais pessoas sofrem abortos espontâneos do que a gente imagina. Justamente pelo fato de eles amiúde ocorrerem no comecinho da gravidez, nós geralmente nem ficamos sabendo que a mulher estava grávida. Afinal, quem vai querer ficar se expondo assim num momento de luto?
E a tonta aqui fazendo um monte de exercício no começo da gravidez... Fico me perguntando: “Por quê nunca me falaram disso antes?”.
Enfim...
Depois que comecei a tomar os remédios – e a tomar mais cuidado – a gravidez correu tranqüila. Tive mais um mini-sangramento uma vez mas foi num dia em que carreguei muito peso e foram só uns respingos. Com o passar do tempo, por volta do sétimo mês, meu médico me disse que eu já podia ficar mais calma e até voltar a me exercitar, contanto que o fizesse de forma moderada. Eu tinha parado com a fisioterapia-pilates-isostretching que eu fazia por conta de um acidente que me causou várias hérnias de disco na coluna e então optei por fazer só caminhada leve. Caminhava durante meia hora, três vezes por semana, em volta da pracinha na frente de casa. Sempre com roupas confortáveis, calçado adequado e o celular à mão caso houvesse algum problema. Além da minha inseparável garrafinha d’água. Eu chegava a beber 500ml durante cada caminhada. Se eu sentia uma dorzinha eu logo parava e voltava para casa para descansar.
E assim eu fui levando a gestação. Isabel nasceu prematura no final. Mas por um dia apenas! Se tivesse nascido seis horas mais tarde seria ‘a termo’. Chegou saudável e chorando. Foi direto para o quarto comigo.
Até hoje eu não sei se meu útero é bicorno ou didelfo. Como eu consegui – apesar dos apesares – ter meu tão ansiado parto natural, não deu para o médico descobrir. Isabel passou a gestação inteira só do lado direito do meu útero. Quando eu me deitava de barriga para cima dava para vê-la apertadinha lá. Esse lado cresceu e se expandiu e o outro encolheu para dar espaço a ela de forma que no final da gravidez ela já ocupava meu ventre todo. Nasceu pequena, com 46cm e 2,445kg.
Sei que fomos muito sortudos, que não é todo mundo que tem uma anomalia uterina e que passa por tudo isso e ainda tem um final feliz. Mas eu quis contar o meu porque me lembro de, desesperada, procurar no Google coisas como "anomalia uterina E bebê saudável" ou "anomalia uterina E parto normal" e raramente encontrar algo positivo, que me acalmasse e acaletasse. Não quero fingir que não foi nada, que mesmo fazendo burrada no final tudo dá certo. Pelo contrário, quero alertar quem está passando pelo mesmo tipo de problema sobre os perigos e cuidados que se tem que tomar. Não sei se eles sempre serão suficientes mas pelo menos fazemos o que podemos.